top of page

As recentes mudanças no mundo do trabalho são evidentes, e em cada momento, parecem acelerar-se, solicitando de toda a sociedade, adaptações, ajustes e rearranjos sociais, políticos e culturais. Novas formas de institucionalização do trabalho geram decorrências que fragilizam a atividade de trabalho, gerando insegurança e busca por respostas, acontecimento que pode ser reportado como uma crise. Entretanto, essa crise é gerada pelo capitalismo? Talvez, a crise é parte do mesmo? Ou ainda, será possível responsabilizá-lo das mazelas sofridas por trabalhadores de todo o mundo? A fim de discutir essas questões e oferecer, ainda que brevemente, algumas respostas para a pergunta título, apresenta-se o presente ensaio.

 

Para iniciar, é necessário compreender qual é a crise no trabalho atual que se versa nesse documento. Tal fenômeno identifica-se por algumas mudanças ocorridas no mundo do trabalho na segunda década do século XXI, caracterizadas pelo aumento da fragilidade do trabalho institucionalizado. A tecnologia digital, aumenta a velocidade necessária para compreensão e ação do ser humano, que vê-se atrasado nessa tarefa e o mantém em uma constante busca pela qualificação. Ademais, a fragmentação das organizações em estruturas mais enxutas que necessitam de menos trabalhadores, promovem a incerteza do emprego ou até da existência da profissão no futuro. Por fim, há ainda a precarização do trabalho, que responsabiliza o indivíduo por sua empregabilidade (Perez, 2008) configurando formas de trabalho sob demanda, sem estabilidade ou vínculo, ou ainda, com multiplicidade dos mesmos, para manutenção da mesma remuneração.

 

Atribuir responsabilidade, em sua definição léxica identifica-se pela “Obrigação de responder pelas ações próprias, pelas dos outros ou pelas coisas confiadas” (Priberam, 2017). Responsabilizar ou culpabilizar o capitalismo por contextos concomitantes parece algo tanto recorrente em nossa sociedade, porém tanto quanto bizarro. Derivando a partir da definição supracitada, questiona-se: qual a obrigação do capitalismo? Ou ainda, qual a sua obrigatoriedade em responder pelas ações daqueles a quem ele foi confiado?

 

Em princípio, parece que atribuir uma obrigatoriedade a um acontecimento tão complexo, é reduzi-lo a figura de uma pessoa. Afinal, a responsabilidade é atribuída a uma pessoa, e o capitalismo, por definição, não é e não pode ser alguém. Portanto, responsabilizar o capitalismo pelos fatores que constituem o conjunto que neste manuscrito chama-se de crise do trabalho atual, seria uma personificação, que provavelmente atrapalharia a compreensão de toda a complexidade da pergunta.

 

Na possibilidade oferecida pela língua portuguesa, de conotar diferentemente os vocábulos, responsabilidade pode ser compreendida como decorrência, influência ou, cientificamente, causa ou determinação. Tal alteração, sem julgamento de valor moral, torna-a passível de análise, por meio da compreensão da funcionalidade das relações que se estabelecem entre suas características. Portanto, o esforço seguinte deste ensaio será em, dentro das dualidades presentes no conceito de capitalismo, explorar as influências de uma de suas características na crise do mundo do trabalho atual.

 

O capitalismo, conceitualmente, é uma representação imprecisa a fim de compreender as relações estabelecidas entre a sociedade, o estado e o individuo por meio da produção econômica, decorrente da interação entre esses entes. Além da nebulosa da labilidade conceitual, a definição de capitalismo ainda é suscetível a perspectivas ontológicas e epistemológicas do conhecimento. Tais contradições e complementaridades se apresentam por meio das diversas compreensões presentes na história do conceito de capitalismo, apresentadas em dualidades por Lash como: (meta) físico, equivalência X diferença, (des) equilíbrio, dentre outras (Lash, 2007).

 

Entretanto, apesar da complexidade (Urry, 2005) do conceito de capitalismo, é possível reconhecer algumas materialidades e metafísicas que auxiliam no reconhecimento e descrição dessa nuvem de relações. Dentre elas estão os valores, de uso e de troca, mercadoria (Marx, 1996), propriedade, classe social, commodities, empregabilidade (Perez, 2008) e outras tão importantes quanto as aqui apresentadas, omitidas nesse texto, por sua extensão. Porém uma delas em especial será objeto de exame, ainda que breve, em suas decorrências para atual crise do trabalho: o lucro.

 

Materialmente, o lucro é a diferença entre o valor de troca de uma mercadoria e os custos gerados em sua produção, com matéria-prima, máquinas e o tempo de trabalho dos funcionários (Marx, 1996). O lucro só é possível, portanto, quando uma empresa compra as horas de trabalho de alguém por valor inferior ao montante dessas horas contido no produto, em sua venda. Marx, ao versar sobre o processo produtivo, complementa que apenas o trabalhador pode dar valor as mercadorias, haja vista que seu trabalho que faz as máquinas funcionarem e transformarem a matéria prima em produto final, que pode ser vendido pelo capitalista.

 

Todavia, na sociedade atual, com a velocidade imposta pela tecnologia digital além dos avanços nas máquinas e nos sistemas de produção, tal afirmação pode ser relativizada, haja vista que não só o trabalhador pode gerar a transformação da matéria-prima em produto. O processo de transformação se dá, cada vez mais, com uso de máquinas (quase) autônomas ou robôs, ou seja, retirando ou reduzindo o papel do homem nesta equação tão conhecida. Além da substituição cibernética, as organizações se cercam de modos de produção enxutos, que geram funções extra, duplas, para trabalhadores de sua instituição, além de terceirizar serviços que são considerados pela gestão, de menor importância, deixando diversos trabalhadores ociosos.

 

Em um raciocínio teleológico, a redução do número de pessoas no processo produtivo aponta para o aumento do lucro, a qual influencia, substancialmente, a relação entre o homem e seu trabalho. A diminuição ou extinção de postos, em seu âmbito estrutural, promovem a incerteza do emprego formal, seja pela substituição por um trabalhador mais “qualificado” ou ao desaparecimento daquela ocupação em função do reduzido custo do implemento da máquina. Para além, ainda observa-se a precarização do trabalho e a redução dos vínculos formais como consequência subjacente.

 

A interação com as tecnologias reiteram o discurso da empregabilidade, pela responsabilização individual por uma contínua formação a fim de manejar produtivamente as máquinas. Ademais, a comparação do desempenho produtivo entre trabalhador e robô, desqualifica emoções, interações sociais e a criatividade do ser humano, ignorando o aspecto artesanal do trabalho em função da alta taxa de produção do robô, em sua pequena margem de erro.

 

Outra decorrência, de ordem política, caracteriza-se por muitos agentes presentes no capitalismo, tais quais instituições, políticos, além de cidadãos em geral, que utilizam as características presentes nessa complexidade para uma lógica escusa, corrompida, tal como observa-se no Brasil desde algum tempo, evidenciado com potência pela Operação Lava-Jato[1]. Concebendo o capitalismo como uma tríade entre Estado, sociedade e indivíduo, a força do lucro, também, promoveu a maior corrupção, na história do Brasil, em bilhões de reais.

 

Neste acontecimento, as empreiteiras envolvidas em processos licitatórios, ofereciam a agentes públicos financiamentos de campanha não contabilizados, para garantir sua vitória nos certames, e lucrar com o oferecimento dos serviços. Os políticos e servidores públicos, cujo trabalho não gera lucro, individualmente, sentiam-se a vontade para capitalizar oferecendo vantagens para as empresas envolvidas. Os partidos políticos e seus candidatos, sob a mesma égide, recebiam valores para financiar suas campanhas, a fim de se manter no poder, para receber mais valores indevidos, decorrentes do lucro obtido pelas empreiteiras, na execução de serviços para o Estado.

 

Por outro lado, responsabilizar um sistema de relações, ou uma característica dele, pelo sucesso ou decadência de um país, ou ainda pela corrupção, parece, em primeiro lugar ignorar a compreensão dos sistemas e da multideterminação dos fenômenos sociais e psicológicos. Ademais, a culpabilização do capitalismo, como é recorrente nos discursos, soa como tentativa de eximir-se das reais responsabilidades individuais, vinculadas as normas, leis e principalmente, a ética.

 

Por fim, responsabilizar uma representação, mesmo que fundamental, por definição imprecisa e fruto de reflexo de um conjunto de relações, pela crise no trabalho atual, parece simplificar e reduzir a complexidade da realidade. Figurativamente, aproxima-se de algo como “caçar fantasmas”, tal qual faz-se com alguns fenômenos sociais como a cultura brasileira (reduzida ao famoso jeitinho brasileiro), ou a figura do governo (reconhecido como ente culpado por tudo que é problema público, mesmo que, na democracia, o governo é escolhido por cada um, individualmente), e tantas outras. Em oportunidade a essa visão, pode-se compreender as características do capitalismo e suas decorrências no comportamento humano em sociedade, a fim de auxiliar a clarificar as relações e a desenvolver possibilidades de intervenção.

 

REFERÊNCIAS

 

Brasil, Ministério Público Federal (2017). O que é a Operação Lava-Jato? Acesso em 15/04/2017, disponível em: http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o....

 

Lash, S. (2007). Capitalism and Metaphysics. Theory, Culture & Society. (24) 5. p.1-26.

 

Marx, K. (1996). O capital. São Paulo: Editora Nova Cultural.

 

Perez, E.R. (2008) Empregabilidade: versões e implicações. Uma leitura desde a Psicologia Social. Tese de Doutorado. Programa de pós-graduação em Psicologia Social e do Trabalho. Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil.

 

Priberam, Dicionário da Língua Portuguesa. (2017) Vocábulo: Responsabilidade. Acesso em 14/04/2017. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/respon....

 

Urry, J. (2005). The Complexity Turn. Theory, Culture & Society. (22) 5. p.1-14.

[1] “A operação Lava Jato é a maior investigação [realizada pelo MPF] de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve.” Os crimes constituíam-se por um “esquema, que dura pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos executivos da estatal [Petrobrás] e outros agentes públicos.” (BRASIL, 2017)

A crise que temos hoje no trabalho é de responsabilidade do capitalismo?

bottom of page